segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Artista: Fantastic Plastic Machine; Álbum: The Fantastic Plastic Machine


Artista: Fantastic Plastic Machine
Álbum: The Fantastic Plastic Machine
Ano: 1997
Gênero: Música eletrônica; Shibuya-kei


Em 2003, na remota época anterior ao YouTube, os vídeos circulavam pela internet via e-mails, softwares de compartilhamento, FTPs e outros meios não tão acessíveis. Eu não me lembro exatamente por qual deles chegou um comercial da Louis Vuitton que me chamou muito a atenção. A parte visual era belíssima, mas o que realmente me prendeu foi a música: uma mistura de muitos fragmentos e instrumentos resultando em um som surpreendentemente pop e bonito. Era o Superflat Monogram, produzido pelo artista japonês Takashi Murakami e com trilha sonora de Tomoyuki Tanaka, mais conhecido por seu nome artístico Fantastic Plastic Machine.


Descobri o nome da música – Different Colors – e descobri também que o estilo do Fantastic Plastic Machine tem um nome: Shibuya-kei, ou "estilo de Shibuya". A origem deste nome é bem interessante. Shibuya é um distrito de Tokyo, famoso por suas inúmeras lojas de roupas de grifes famosas. Do seio dessa cultura de consumo, um grupo de DJs, produtores e bandas começou a produzir materiais que traziam algumas características em comum: bastante influência da bossa nova, do pop francês sessentista, do yé-yé, do lounge e de outras vertentes ocidentais, mas fragmentadas e arranjadas de uma maneira peculiar, que refletia a realidade da juventude oriental daquela região.

O primeiro álbum do FPM (abreviação que passaremos a usar para o restante deste post), o auto-intitulado The Fantastic Plastic Machine, é considerado um álbum seminal do shibuya-kei, apresentando seus principais elementos de maneira brilhante e equilibrada. Vamos às faixas!

Apesar de curtíssima, a música que abre o disco, Bon Voyage, já mostra alguns elementos descritos acima: colagens sonoras, uma voz feminina contando one, two, three, four ao fundo, um coralzinho fazendo o pano de fundo e, inesperadamente, uma voz masculina deseja ao ouvinte, em francês, um bon voyage. É o suficiente para o álbum começar de verdade com L'Aventure Fantastique. A melodia da introdução é simples, mas é como se cada nota da frase musical tivesse sido tirada de uma outra música e colada ali. Um sample de voz feminina dá as boas-vindas ao ouvinte em francês e inglês, e então começa uma batida eletrônica típica do house. Em meio aos eventuais samples de vozes, uma melodia quase infantil (e bastante fragmentada) chama a atenção, como se tivesse saído de um brinquedo muito esquisito de uma criança do futuro. O arranjo tem tantos detalhes que é preciso escutar muitas vezes para captar tudo, e ainda assim é extremamente fácil de escutar. Um belíssimo começo.

Mr. Salesman emprega em sua melodia e ritmo muitos elementos do yé-yé sessentista francês (o equivalente ao nosso iê-iê-iê brasileiro), mas com um brilho e alegria muito característicos do shibuya-kei. Desta vez, a estrutura da música é mais convencional, com versos e refrão, mas a maneira como o arranjo é construído é muito peculiar. Muitos teclados, flauta e diversos outros instrumentos, provavelmente oriundos de canções dos anos 60 e 70 e sabe-se lá de onde. Outra música muito bacana.

A faixa seguinte, Barcherlor Pad (F.P.M. edit), empresta bastante do pop francês e do drum 'n' bass, exagerando nas vocalizações femininas cantando um pa-pa-pa sobre uma base percussiva muito completa, preenchida por baixo, guitarra e muitos teclados. Em determinada parte da música, uma pausa que até lembra a pausa dos Mutantes em Rua Augusta. Interessante ver como o FPM consegue criar tantas variações de intensidade e arranjo dentro da mesma melodia.

Fantastic Plastic World (voice 'n' baroque) tem uma batida reta da bateria e um toque de trip-hop e soul. O vocal é todo falado, quase sussurrado, em francês por uma moça de voz suave sobre a base à-lá The Roots, até que eventualmente um sample de chanson (venho falando muito sobre o chanson em resenhas recentes) dá as caras e começa a competir com um ruído que fica cada vez mais agudo. Quando tudo parece caminhar para um gran finale, o volume da música vai abaixando e temos um tradicional fade-out, que neste contexto é realmente surpreendente.

O ouvinte brasileiro certamente se sentirá em casa ao ouvir a próxima faixa, Steppin' Out. A canção é uma belíssima bossa nova com uma roupagem diferente, contendo um discreto beatbox e um tecladinho futurista dando as caras eventualmente (lembra um pouco Caipirinhaum dueto de Mike Patton e Bebel Gilberto que aparece no álbum auto-intitulado do Peeping Tom). Cantada em inglês, é extremamente agradável e é um belíssimo complemento ao disco, conseguindo ser diferente sem destoar do estilo das demais. Quando a bateria eletrônica eletrônica entra, é surpreendente; quando ela dá lugar a uma inesperada percussão de escola de samba, vemos como a visão dos músicos de shibuya é interessante. Um dos pontos altos do álbum.




Allen Ginsberg leva o nome de um dos poetas mais importantes da geração beat, famoso pelo poema Howl (Uivo), de 1955, que abordava temas como homossexualidade, materialismo e política, que eventualmente lhe renderia um processo por "obscenidade". É uma das mais experimentais do disco, com uma melodia quase balcânica tocada por um teclado/acordeão e uma passagem tocada no saxofone. Será que a melodia instável e o ritmo frenético são um reflexo da vida do poeta que dá nome à música?

Após um começo totalmente fragmentado, First Class '77 assume um formato bem viajante, com texturas bem viajantes, uma batida espaçada e um insistente sample de voz. Apesar de ter quase sete minutos, é uma das faixas mais fracas do álbum, e funciona mais como um filler.

Philter (In Viaggio Attraverso L'Australia) tem uma melodia marcante e que parece saída dos anos 30, acompanhada por uma voz feminina fazendo vocalizações. A bateria, entretanto, apresenta diversas variações, incluindo o jungle (ou drum 'n' bass), que estava no auge da popularidade na época em que o álbum foi lançado. É um perfeito exemplo de como o shibuya-key mescla influências muito distintas e a transforma em algo novo e instantaneamente reconhecível.

A penúltima faixa, Please, Stop!, traz um coro feminino fazendo vocalizações típicas do doo wop sobre a bateria eletrônica. É interessante, mas um tanto repetitiva e não chega a ser um destaque.

O álbum termina com Pura Saudade (Nova Bossa Nova), que já deixa explícita no título sua principal influência. A exemplo de Steppin' Out, é uma bossa com um toque moderno, mas desta vez é cantada em português por uma vocalista mulher e não apresenta tantas variações e experimentações. Ainda assim, é um belo encerramento.

O debut do Fantastic Plastic Machine é um belo exemplo de como existem diversas formas de rearranjar e inovar estilos aparentemente esgotados. A música alegre e colorida deste álbum (e do shibuya-kei, em geral), seu uso inteligente dos samples e a produção impecável são dignos de serem conhecidos e apreciados.

Tracklist:
1. Bon Voyage
2. L'Aventure Fantastique
3. Dear Mr. Salesman
4. Barchelor Pad (F.P.M. Edit)

5. Fantastic Plastic World (voice 'n' baroque)
6. Steppin' Out
7. Allen Ginsberg
8. First Class '77
9. Philter (In Viaggio Attraverso L'Australia)
10. Please, Stop!
11. Pura Saudade (Nova Bossa Nova)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Artista: Manu Galure; Álbum: Vacarme

Artista: Manu Galure
Álbum: Vacarme
Ano: 2010
Gênero: Chanson; jazz


Há alguns posts, falei sobre o álbum I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now, do Got a Girl, e as circunstâncias exigiram que eu fizesse um apanhado geral sobre o que é o chanson e a música pop francesa. Como o álbum aqui resenhado é um álbum francês tanto em origem quanto em estilo, é pertinente dar um ctrl+c ctrl+v:
Um termo muito recorrente quando se fala de música francesa é chanson (canção). Embora o termo possa ser aplicado a qualquer música cantada em francês, quando se fala em chanson se está pensando num gênero musical que foi popular na França no período entre o final do século XIX até a metade da década de 60 no século XX. Talvez seus representantes mais conhecidos fora dos países francófonos sejam o belga Jacques Brel e Édith Piaf, ambos idolatrados por suas vozes e pela singularidade de suas interpretações. Talvez o equivalente brasileiro do chanson seja o samba-canção: em ambos os estilos, os intérpretes apresentam vozes potentes, que são o principal foco da canção, com o acompanhamento de uma orquestra, piano ou instrumento acústico. Porém, a partir dos anos 60, o estilo, a exemplo do que ocorreria em diversos outros países do mundo ocidental, acabou se misturando a outros de origens distintas (como o rock and roll) e gerando diversos subgêneros, como o yé-yé  e o pop.
Pois bem. A mistura de gêneros e influências citada acima resultou em um boom criativo na França, e até hoje algum artista ou grupo oriundo do país ocasionalmente faz sucesso fora do circuito francófono: Daft Punk, Air, Justice, Manu Chao e outros tantos, às vezes inclusive cantando em francês (alguém se lembra do Tragédie e seu hit Hey Oh?). Porém, se há nas músicas destes artistas algum resquício do velho chanson, ele está tão diluído que chega a ser difícil encontrá-lo.

Definitivamente este não é o caso das composições de Manu Galure. O rapaz de 29 anos exala o chanson pelos poros de seu piano e de sua voz, apresentando-o com novas roupas, novo fôlego, mas mantendo-o plenamente reconhecível. Curiosamente, ao pesquisar sobre ele na internet, notei que é bastante desconhecido fora da França e, talvez, até dentro dela. Sua página na Wikipedia francesa, por exemplo, é bem modesta, e não existe sequer uma menção a ele na gigantesca versão em inglês. Ao recorrer ao seu site oficial (em francês), frustrei-me ao ler "biografia" no plural, sendo que apenas uma das seis (!) está pronta e é uma piada: um registro fictício "escrito em 2078" na "Antologia do Chanson Francês" dizendo como Galure é a "figura maior do ainda-mais-novo-chanson-francês". Mas deixemos as gracinhas de lado e vamos à música.

Vacarme é o segundo álbum de Manu Galure e foi lançado em 2010 (o debut, Le Meilleur des Vingt Ans de Manu Galure, fora lançado dois anos antes). A capa é pouco reveladora para alguém que, como eu, começa a ouvir o álbum sem ter ideia do que esperar em termos de som, mas basta Danse du Vieux (Dança do Velho, corrijam-me se eu estiver equivocado) dar as caras para identificarmos alguns dos elementos chave do estilo de Galure. O piano é o instrumento dominante, não há um comprometimento com a seriedade nas letras e a interpretação das mesmas é bastante teatral. Além disso, no caso da faixa-título, a ausência de guitarras, baixo e até mesmo bateria chama a atenção; a percussão fica por conta de um "relógio-metrônomo" e de eventuais pratos. A performance vocal é fantástica, alternando entre um vocal quase falado para um "lalala" rouco e forte, à lá scat singing (aquelas vocalizações improvisadas e sem letra, típicas do jazz).

Captain Ravage é divertida e soa mais moderna que a anterior. Embora seja guiada principalmente pela voz e pelo teclado de Galure, temos aqui baixo, bateria, uma eventual guitarra e até backing vocals femininos, num estilo mais próximo do jazz. Gostaria muito de poder entender tudo o que ele fala, mas é possível perceber que ele conta a saga de seu personagem que dá título à música. Uma divertida e bela canção.

Uma das minhas favoritas é a terceira, Berlin-Lycanthropes (Lobisomens de Berlim). Um jazz com clima noir, com direito a eventuais uivos histéricos e mais scat singing. O baixo é o grande destaque aqui, apesar de, ao vivo, ser tocado ao teclado com bastante competência por Pierre Bauzerand. Confira abaixo uma performance (em andamento bem mais lento do que no álbum).



Les Éléphants é mais lenta, vagarosa como a passada dos elefantes que lhe dão nome. Estende-se por mais de seis minutos e vai se intensificando pouco a pouco, chegando a um clímax instrumental e morrendo aos poucos com o fade out. Entretanto, musicalmente, não é uma das mais interessantes de Vacarme, e me pergunto se a letra não esconde as principais qualidades desta canção.

A morosidade da faixa anterior é destruída por Je Crache (Eu Cuspo), o momento mais rock and roll do álbum. É a primeira vez que a bateria dá as caras com mais volume, e o ritmo acelerado e as pausas remetem ao rock dos anos sessenta, com um coral de vozes femininas cantando o refrão. Em alguns momentos, os teclados tocam um riff pesado que pode até parecer emprestado do Deep Purple. Faixa muito interessante e destoante do resto do disco.

Méliès, uma homenagem ao famoso ilusionista e cineasta francês Georges Méliès, tem um ritmo quase galopante, com o teclado pulsante e o piano mais melódico dialogando o tempo todo enquanto Galure canta. Uma bela homenagem a uma figura importantíssima, que revolucionou o cinema. Veja abaixo Méliès em ação em Le Voyage Dans la Lune, de 1902 (!!):




Du Vacarme (Algazarra) começa com um clima sinistro, com acordes dissonantes no teclado e um Galure incisivo recitando a letra. Porém, aos poucos, a bateria vai se intensificando, e a canção ganha mais peso e texturas, ficando cada vez maior. Quando nos damos conta, a música está enorme e surpreendentemente barulhenta, envolvendo absolutamente o ouvinte em apenas três minutos. Uma ótima faixa.

Bijoux (Jóias) é uma pequena peça de dois minutos de duração. Composta apenas por piano e voz, é a mais melancólica de Vacarme, mas também uma das mais belas, com uma interpretação impecável de Galure tanto na voz quanto no piano.

Quelque Chose en Mi (Qualquer Coisa em Mi) tem uma pegada totalmente big band, com o baixo dominante e mais scat singing. Poderia estar em uma versão francesa do clássico O Máscara, em alguma cena dentro do Coco Bongo. O solo de piano de Galure é sensacional.

Valse-moi (Valsa-me) é, como o nome sugere, uma valsa. Entretanto, está longe de ser convencional, visto que o compasso é irregular e há diversas variações de intensidade dentro da música. Os versos são quase circenses, enquanto os refrões são minimalistas, com Galure cantando com voz suave e tocando arpejos agudos e rápidos em seu piano. Mais uma bela faixa.

O álbum termina com Le Cabaret de Galure (O Cabaré de Galure), uma faixa que lembra Les Éléphants em andamento, mas com uma percussão mais leve. É uma pena não saber o que ele está dizendo, porque sem o conteúdo da letra a faixa que fecha Vacarme soa um tanto sem graça. Mas isso está longe de tirar o brilho ou o talento deste álbum de um artista tão jovem e talentoso.

Vacarme é um ótimo álbum, com momentos verdadeiramente interessantes (como Danse du Vieux, Berlin-Lycanthropes, Je Crache e Valse-Moi). Porém, é evidente que a obra de Manu Galure se torna muito mais interessante com a plena compreensão das letras, e o idioma se torna uma barreira importante nesse aspecto. Mas mesmo sem parler pas français, é possível aproveitar este belo disco, que pode ser ouvido na íntegra neste link do site oficial de Manu Galure.

Tracklist: 
1. Danse du Vieux
2. Captain Ravage
3. Berlin-Lycanthropes
4. Les Éléphants
5. Je Crache
6. Méliès
7. Du Vacarme
8. Bijoux
9. Quelque Chose en Mi
10. Valse-moi
11. Le Cabaret de Galure

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Banda: Beat Circus; Álbum: Dreamland

Banda: Beat Circus
Álbum: Dreamland
Ano: 2008
Gênero: Cabaré, experimental


Em 1904, foi fundado um enorme parque de diversões na cidade de Nova York. O parque se chamava Dreamland (Terra dos Sonhos) e continha uma enorme variedade de atrações, que iam desde os tradicionais domadores de leões até uma inteira vila "lilliputiana" com nada menos que 300 anões (!!) e uma inusitada exposição de bebês em incubadoras – como os hospitais ainda não confiavam totalmente no equipamento, uma família de circenses resolveu testá-los em seus próprios filhos, trigêmeos prematuros. O parque possuía uma enorme torre, mais de um milhão de lâmpadas e muitos outros superlativos.


Apesar de toda a pompa e beleza, o Dreamland teve um destino trágico: um enorme incêndio em 1911 engoliu o parque, e a história do enorme parque terminou por aí (nota: os bebês das incubadoras foram salvos, mas, infelizmente, um dos leões não teve a mesma sorte e foi morto a tiros pela polícia novaiorquina enquanto corria solto pelas ruas).

A trágica história do parque de diversões foi absorvida pela cultura pop e inspirou diversos relatos, reportagens, romances. Inspirou, também, um compositor chamado Brian Carpenter, a mente por trás do Beat Circus e, consequentemente, por trás deste álbum. Falemos um pouco, então, deste peculiar projeto.

A história da "banda", se é que o termo se aplica, teve começo em 2001, quando Carpenter se mudou para Boston para dirigir um documentário sobre a vida de Albert Ayler, um dos saxofonistas mais extremos e peculiares do free jazz (aliás, seu disco Spiritual Unity, de 1964, é belíssimo). Ele conheceu o banjoísta Brandon Seabrook, que lhe apresentou alguns músicos, e juntos eles criaram um projeto musical que se firmava em músicas circenses e improvisação. Originalmente chamado de Beat Science, o projeto foi rebatizado de Beat Circus e lançou seu primeiro álbum, Ringleaders, em 2004, contendo o tipo de material descrito nas linhas anteriores.

Em 2005, o som do Beat Circus sofreria uma guinada radical em seu estilo. Carpenter começou a escrever um conjunto de músicas que totalizavam 150 páginas de partituras com letras, uma mudança bastante significativa. A obra era baseada na trágica história do parque Dreamland, tanto musicalmente, com sua sonoridade de cabaré e pré-jazz, quanto liricamente, com referências a fatos e personagens. Para executá-la, Carpenter incrementou a formação original do Beat Circus com novos integrantes, resultando em um grupo de nove pessoas. Além disso, como se o projeto já não fosse ambicioso o suficiente, anunciou que Dreamland era a primeira parte de uma trilogia denominada Weird American Gothic – embora não se saiba exatamente qual seja seu fio condutor, visto que não há nenhuma ligação entre Dreamland e o álbum seguinte, Boy From The Black Mountain. Mas vamos às faixas.

A abertura Gyp the Blood é instrumental e tem um ambiente misterioso e antigo, instigando o ouvinte e convidando-o a desvendar o que vem pela frente. É o grupo se apresentando: percussão, banjo, cordas e metais vão surgindo aos poucos, e antes que se perceba estão enchendo os ouvidos.

O apito do trem junta a faixa anterior a The Ghost of Emma Jean. A faixa truncada, que nunca parece chegar a um desdobramento com seu banjo insistente e suas cordas em staccato. Quando os vocais do próprio Carpenter entram, entendemos: a faixa conta a história de Emma Jean, uma garota que morreu atropelada por um trem e agora vive do sombrio ofício de assombrar sonhos. Ao final, uma gaita simula os apitos do  trem enquanto o fantasma, interpretado por Orion Rigel Dommisse, canta um sinistro la la la.

O curto e sombrio interlúdio Hypnogogia anuncia uma das melhores faixas do disco: Delirium Tremens. O título da música é uma referência ao termo usado para descrever os sintomas da abstinência de álcool em alguns dependentes: delírios, pesadelos, tremedeiras e outras tantas coisas desagradáveis. O andamento lento e sinistro, as escalas no banjo, a percussão e as cordas fantasmagóricas fazem o pano de fundo para a voz teatral de Carpenter cantar sofrida. No refrão particularmente viciante, em que o título da música é cantado por um coro, entra um acordeon e tudo ganha um tom especialmente tragicômico. Sensacional.



Lucid State é mais um interlúdio, que tem uma pegada meio nuevo tango, parecida com as músicas compostas por Glover Gill e executadas pela Tosca Tango Orchestra para a trilha sonora do ótimo filme Waking Life (se você não assistiu, assista!). Ela abre alas para a sombria Death Fugue, que tem uma pegada totalmente heavy metal apesar da falta de guitarra e distorções. Os vocais em harmonia, os violinos quase diabólicos ao fundo e o estouro no meio da música são puro rock and roll.

The Good Witch é mais um filler, com uma voz feminina fazendo vocalizações com um teclado ao fundo. Em seguida, a valsa triste Dark Eyes é anunciada por uma longa introdução ao violino, e nos sentimos no casamento de Connie Corleone no primeiro filme da trilogia O Poderoso Chefão. Belíssimo tema.

A delicadeza e lirismo da valsa morre subitamente na frenética Slavochka, com seu dueto furioso entre violino e trompete. A melodia e o andamento enganam o ouvinte e fazem parecer que a canção nasceu do mesmo vilarejo romeno de onde saiu o Taraf de Haïdouks, e é muito fácil imaginar uma trupe cigana dançando fervorosamente. Nem mesmo as mudanças de andamento e compasso descaracterizam esta ótima composição, que é um dos grandes momentos do álbum.




The Gem Saloon é interessantíssima, com uma pegada meio Tom Waits. Entre a voz de Carpenter e a das garotas que cantam o refrão, ouvimos muitas camadas diferentes de instrumentos e, pela primeira vez, um solo de guitarra (slide guitar, para ser mais preciso).

Após o interlúdio El Torero, que é basicamente um solo de trompete tocado pelo próprio Carpenter, temos a valsa flamenco-circense The Rough Riders, com suas diversas mudanças rítmicas, passando do andamento quase embriagado até um empolgante flamenco. Um momento um pouco morno, mas não menos bonito.

Coney Island Creepshow é bastante teatral. Começa com o anúncio de um apresentador de circo da grande atração: o show de aberrações e é evidente que o clima circense domina a canção, que remete totalmente à música de cabaré. Além de Carpenter, DJ Hazard e M. McNiss também cantam, e os três vão se alternando verso a verso. Divertida, mas não é um destaque.

Hell Gate é bizarríssima, misturando muitos fragmentos em seus 2:37 de duração. Música circense "fora de rotação", um curto momento meio Fantômas, interrupções inesperadas, corais sinistros, música balcânica – tudo está aqui. O interlúdio – se é que podemos chamá-lo assim – mais interessante do álbum.

Meet Me Tonight In Dreamland representa o momento em que o circo pega fogo - literalmente. É um dramático solo de piano com efeitos sonoros ao fundo, que logo para e dá lugar ao som de fogo e gritos. Quando tudo parece acabar, um último solo no melhor estilo "saloon" encerra tudo.

O álbum encerra com March of the Freaks, que começa após um minuto de silêncio. Alguns suspiros meio "beat box" quebram o silêncio, e uma última melodia circense finaliza a primeira etapa da trilogia de Brian Carpenter.

Dreamland é um álbum interessantíssimo e tem alguns momentos verdadeiramente brilhantes, como Delirium Tremens e Slavochka, mas o final é um pouco anticlimático. De qualquer maneira, vale a pena conhecer a trupe de Carpenter e suas impressionantes habilidades. O melhor de tudo é que o álbum todo pode ser ouvido gratuitamente neste link, que traz também a lista de participantes em cada uma das músicas.

Tracklist:
1. Gyp The Blood
2. The Ghost of Emma Jean
3. Hypnogogia
4. Delirium Tremens
5. Lucid State
6. Death Fugue
7. The Good Witch
8. Dark Eyes
9. Slavochka
10. The Gem Saloon
11. El Torero
12. The Rough Riders
13. Coney Island Creepshow
14. Hell Gate
15. Meet Me Tonight In Dreamland
16. March Of The Freaks

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Artista: Holger Czukay; Álbum: Movies


Artista: Holger Czukay
Álbum: Movies
Ano: 1979
Gênero: Art rock, avant-garde


Após três resenhas de álbuns bastantes recentes, vamos voltar ao ano de 1979 para falar de Movies, primeiro álbum solo do multi-instrumentista alemão Holger Czukay. Mas antes, é importante falar da banda da qual antes ele fazia parte: Can.

Entre os fãs de música experimental e krautrock, o Can é considerado um grande expoente. A banda nasceu no final dos anos 60 em Köln, Alemanha Oriental. O maestro e pianista Irmin Schmidt havia viajado para os Estados Unidos e, durante sua estadia, desenvolveu um novo relacionamento com a música e com a arte em geral. Passou bastante tempo em companhia de músicos avant-garde, conheceu o trabalho de Andy Warhol e se encantou com o Velvet Underground. Tudo isso, segundo ele próprio, foi crucial para sua formação musical, que até então fora um tanto restrita à música erudita.

Em 1968, Schmidt retornou para Köln e resolveu montar uma banda para explorar sua revigorada educação musical. Entrou em contato com o flautista norte-americano David C. Johnson e com o então professor de música Holger Czukay. Logo, o grupo seria acompanhado pelo jovem guitarrista Michael Karoli e pelo baterista Jaki Liebezeit. Johnson, que era da escola de música erudita de vanguarda, sentiu-se insatisfeito com o som mais roqueiro da banda e deixou o grupo, e assim foi formada a base do Can.

Uma vez definido o line-up, eles entraram em contato com o vocalista e escultor norte-americano Malcolm Mooney, que se juntou à banda e participou do debut Monster Movie, de 1969 (nota: o Can chegou a gravar um disco antes deste, chamado Prepared to Meet Thy Pnoom, mas não conseguiu acordo com nenhuma gravadora para lançá-lo na época). O álbum é uma viagem e traz diversas características que seriam comuns aos registros posteriores e ao gênero que seria batizado de krautrock ("rock chucrute") pela imprensa britânica: experimentalismo, improvisações, muitos efeitos de estúdio e texturas.

No ano seguinte, Mooney deixou a banda (diz a lenda que teve um colapso nervoso), sendo substituído pelo músico japonês Kenji Suzuki, mais conhecido como Damo Suzuki. Esta "troca" representou uma grande mudança no estilo do Can, visto que ambos os vocalistas apresentam características bastantes distintas: Mooney é expansivo e atrai bastante a atenção para si, enquanto Suzuki é contido e acaba se mesclando à banda.

O primeiro álbum com o novo vocalista é o pioneiro e único Tago Mago, de 1971, que consta na lista de "mais influentes" de muitas bandas e artistas. A gravação deste disco foi, em alguns momentos, completamente não convencional. Pra começar, foi gravado em um castelo em que a banda morou por um ano (de favor, diga-se de passagem). Quando eles faziam alguma jam para passar o tempo, Holger Czukay os gravava sem que eles soubessem e, posteriormente, editava tudo e transformava fragmentos em uma música estruturada. Czukay também fazia colagens com pedaços de fitas e usava técnicas de estúdio incomuns, muitas vezes testando os limites do ouvinte casual e navegando por águas do avant-garde.

Com o passar dos anos, o som do Can foi se transformando, e a cada lançamento eles incorporaram diferentes influências: ambient, funk, música eletrônica, world music e por aí vai. Em certo ponto, Czukay deixou o baixo de lado e passou a se dedicar exclusivamente às suas experiências com efeitos sonoros. Pouco tempo depois, em 1978, ele deixaria o Can.

Como não fazia mais parte de uma banda, Czukay se viu com total liberdade para criar um álbum exatamente do jeito que gostaria (é a vantagem e desvantagem de ser um artista solo: sem amarras, mas sem a mágica da coletividade). Porém, curiosamente, ele recorreu justamente a seu ex-parceiros de Can para ajudá-lo na parte instrumental, de maneira que todos eles aparecem no álbum em algum momento.

Vamos, finalmente, ao referido álbum, nomeado Movies.

A primeira faixa é, também, uma de minhas favoritas: Cool In The Pool. Eu queria imaginar alguém realmente sisudo e sem senso de humor escutando esta pérola, que começa com uma guitarra limpa tocando um ritmo de funk e logo se transforma em uma música engraçadíssima e bizarra, que causa uma enormidade de sensações no ouvinte. Ao mesmo tempo em que a interpretação vocal é hilária (como no refrão "then let's get cool in the pool" com uma voz afetada e sotaque alemão fortíssimo no último L das duas palavras), as guitarras são muitíssimo bem arranjadas e as inúmeras colagens feitas por Czukay dão uma beleza ímpar à música. É importante frisar o quanto esse processo era diferente e analógico naquela época, e me pergunto como ele fazia para conseguir os samples tão peculiares que conseguia. Tem de tudo: uma mulher cantando ópera, música árabe, solos de trombone e outros instrumentos, efeitos sonoros diversos, colagens de diálogos de filmes etc. Faixa divertidíssima.



Oh Lord Give Us More Money tem um viés mais space rock, com efeitos mais futuristas e som mais esparso. A música de mais de 13 minutos é uma viagem experimental, frequentemente preenchida por guitarras limpas harmonizando, sintetizadores, quase como se fosse um ambient não tão ambient assim. De certa maneira, lembra um Alan Parsons Project um pouco mais extravagante e esquizofrênico.

Persian Love é muito peculiar. Meio reggae, repleta de duetos e solos de guitarra, samples de música árabe e com um clima meio fase-da-água de diversos jogos de videogame dos anos 90, é belíssima e novamente mostra a criatividade de Czukay e seu empenho em surpreender e encantar o ouvinte ao mesmo tempo.

Por fim, a viajadíssima Hollywood Symphony é um épico de mais de 15 minutos que passa por diversos ritmos e intensidades. Podemos até identificar alguns momentos distintos: na primeira metade, ela tem um andamento moderado, com a bateria em looping e os demais instrumentos agindo bem livremente, novamente com samples de filmes e alguns vocais divertidos de Czukay (o inesperado "I feel so beautiful now!" é hilário). Após os 7 minutos, um curto interlúdio sinistro dá lugar a uma pegada bem mais progressiva, com uma bateria frenética mantendo o compasso de 5/4. Eis que, inesperadamente, um acorde belíssimo de teclado anuncia a parte final da música, repleta de acordes longos de teclado e rápidos solos de guitarra. Bastante experimental e ousada.

E assim termina Movies, um álbum repleto de momentos distintos apesar de conter apenas quatro faixas. Não é uma audição fácil (especialmente Oh Lord Give Us More Money e Hollywood Symphony), mas é bastante recompensador se deixar levar pela mente e pelas experimentações de Czukay. É interessante perceber as necessidades dele como compositor: para se expressar, ele precisa recorrer a diversos elementos não-convencionais, muitas vezes alheios à música em si.

É o tipo de álbum que desafia o ouvinte a revisar seus conceitos. Vale a pena escutar.

Tracklist:
1. Cool In The Pool
2. Oh Lord Give Us More Money
3. Persian Love
4. Hollywood Symphony

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Artista: Curtis Harding; Álbum: Soul Power



Artista: Curtis Harding
Álbum: Soul Power
Ano: 2014
Gênero: Soul; R&B; Rock

Há alguns meses, assisti A Um Passo do Estrelato (Twenty Feet From Stardom), vencedor do Oscar na categoria Melhor Documentário em 2014. É um filme interessantíssimo, que mostra o mundo da música visto pelas (e pelos) backing vocals de grandes bandas e artistas. Em certo momento, o documentário aborda um aspecto bastante comum entre esses músicos: a tentativa de sair da penumbra e caminhar diretamente até o foco de luz, seguir uma carreira solo e ser reconhecido por seu talento individual. De certa maneira, a história de Curtis Harding é semelhante.

Harding tem 35 anos e não é exatamente um garoto ou um novato. Já atuou como cantor de apoio e compositor para nomes como OutKast e Cee-Lo Green e, segundo ele mesmo, foi backing vocal a vida toda, pois desde que consegue se lembrar cantou na igreja. Entretanto, só agora, em 2014, ele juntou uma banda e gravou seu próprio material, com seu nome e rosto estampado na capa, e o resultado foi o ótimo Soul Power.

O disco abre com Next Time, uma das favoritas do próprio Harding, com uma leve pegada de folk rock e soul. A bateria reta e o violão são complementados por um suave teclado e pela voz de Curtis. É bacana observar como a música aos poucos vai se preenchendo: a guitarra que entra no refrão, os metais que entram logo depois, o órgão e assim por diante. O solo de teclado no final, logo depois do singelo see you later, bitch, entra com os dois pés no peito e faz o ouvinte pensar em Billy Preston.

Castaway é praticamente oposta à faixa anterior. Bem mais suave e melancólica, bebe direto do R&B, com Harding cantando de maneira quase fantasmagórica acompanhado de seu violão e de um teclado à lá Brian Jackson. No belo refrão, a música se intensifica com a entrada da bateria típica do blues, e a melodia triste ganha corpo de vez. Destaque para o curto, porém belo, solo de guitarra antes do segundo verso.

Parecemos entrar em uma máquina do tempo ao ouvir a terceira faixa, Keep On Shining. A música parece uma mistura de Earth, Wind and Fire com Otis Redding: a introdução na guitarra funkeada com a bateria acompanhando no chimbal e a explosão para o verso, com guitarra e metais dividindo a responsabilidade de criar o palco para a voz de Harding soar inspirada pelos grandes nomes do soul dos anos 60 e 70. O refrão simples ("just keep on shining, keep on shining, keep on shining bright"), com acompanhamento de backing vocals, é insistente em ficar na cabeça. O vídeo retrô também é um show à parte. Ótima faixa.



A deliciosa Freedom é bailante, com sua pitada de salsa e baixo marcante. A performance vocal de Harding é brilhante, alternando momentos graves com falsetes pertinentes. O interessante é que, apesar de todo o swing, é uma música bastante minimalista, com todos os instrumentos tocados suavemente e na medida.

A contenção de Freedom, porém, só dura por seus 2:42. A faixa seguinte, Surf, entra com uma nota distorcida de guitarra e uma bateria alta e pesada. Lembra bastante Lenny Kravitz, com um feeling bem rock and roll e guitarra no talo. A parte em que Harding vai descendo com sua vocalização e culmina em um solo de guitarra é sensacional, e aqui podemos fazer uma reflexão: as cinco faixas abordadas até aqui são completamente distintas entre si. Soul Power é um álbum bastante versátil, e Curtis Harding consegue transitar com tranquilidade e competência entre os gêneros.

I Don't Wanna Go Home é frenética, com a cozinha dominando a música e as guitarras mostrando bastante influência sessentista, principalmente de rock instrumental (Rumble, de Link Wray & His Ray Men, me vem à mente). Novamente Harding acerta no tom e nas referências quando, em um dos poucos momentos mais quietos, nos faz ouvir backing vocals à lá Motown respondendo à sua voz. Mais uma bela faixa.

Beautiful People é puro feeling, com uma bela progressão de acordes e a voz de Harding repleta de chorus e tremolo, como se estivesse nos anos 60 cantando através dos falantes de um Leslie (como a voz de John Lennon em Tomorrow Never Knows, ou do Arnaldo Baptista em Dia 36, ou de Ozzy Osbourne em Planet Caravan, e por aí vai). O arranjo também é belíssimo, com ótimos riffs de guitarra e presença certeira dos metais nas texturas.

The Drive começa com um climão pesado e urbano, com baixo e bateria tocando um riff que poderia, com imaginação, estar até em alguma música do Massive Attack. Porém, a voz e a interpretação de Harding nos lembra que aqui a pegada é outra, e observamos uma interessante mescla entre uma batida moderna e um arranjo delicado, com direito a trompete à lá Cake e uma guitarra espertíssima que eventualmente entra com um lick para deixar o ouvinte com a pulga atrás da orelha. Pra coroar tudo, temos no final um naipe de metais que poderia estar tranquilamente em uma música de Otis Redding.

Heaven's On The Other Side é um flerte válido e sincero com a disco music, claramente influenciado por bandas como Chic e Cameo. Todos os elementos estão aqui: guitarrinha à lá Nile Rodgers, baixo pulsante, bateria tocando o chimbal em semicolcheias e tudo mais. Dançante até a última nota, com um belo refrão e metais muitíssimo bem arranjados. Outro ponto altíssimo.

Drive My Car é um blues rock que me remete aos Rolling Stones, com uma melodia direta e guitarra dominante. Harding canta com uma voz mais grave e entonação mais despojada, como se fosse o resultado de um cruzamento quase inimaginável de Mick Jagger e Jimi Hendrix. Uma ótima faixa para se ouvir dirigindo, como o título sugere.

A penúltima faixa, I Need A Friend, tem um clima totalmente Marvin Gayeano, com o falsete malemolente acompanhando a base tranquila e sexy. A guitarrinha ao fundo com wah wah, os metais e o teclado parecem ter saído diretamente dos anos 70.

A música que encerra o álbum é Cruel World, que, a exemplo de Drive My Car, tem uma atmosfera estradeira. A bateria truncada e o baixo flertando com o jazz dão o suporte para a guitarra distorcida tocar seu riff estranho e Harding destilar seu feeling nos vocais. Um encerramento um tanto destoante das demais, mas é até apropriado se pensarmos no quão heterogêneo é este debut.

Curtis Harding estreou com o pé direito. Ele não se deixou deslumbrar com o debut, e isso significa que sua banda toca junto com ele, não para ele. Há nas músicas uma energia crua que vai na contramão das superproduções que dominam o mainstream, e isso é sempre muito bem-vindo. Ainda é cedo para falarmos de um segundo álbum – Soul Power foi lançado no dia 6 de maio de 2014! –, mas espero sinceramente que Harding consiga manter o nível em eventuais lançamentos vindouros. Certamente não sou o único.

Tracklist:
1. Next Time
2. Castaway
3. Keep On Shining
4. Freedom
5. Surf
6. I Don't Wanna Go Home
7. Beautiful People
8. The Drive
9. Heaven's On The Other Side
10. Drive My Car
11. I Need a Friend
12. Cruel World

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Artista: Benjamin Clementine; EP: Cornerstone



Artista: Benjamin Clementine
EP: Cornerstone
Ano: 2013
Gênero: R&B, Jazz

Em uma estação de metrô de Paris, um rapaz inglês ganhava a vida como busker, que em sua língua natal significa "aqueles músicos de rua que tocam por alguns trocados". Ele não havia exatamente escolhido estar ali; fora o acaso. Londres não guardava nada pra ele, na verdade. Ela não o queria – nem ele nem seus outros quatro irmãos mais velhos, ou seus pais, descendentes de imigrantes ganeses, que tinham "empregos de negros", como ele mesmo define com ironia.

Embora falemos de "irmãos" e "pais", ele não teve uma família, na verdade. Tudo na pequena casa ao norte de Londres era pesado. Regras demais. Quase nada de televisão, quase nada de interação entre os irmãos e, para piorar, as companhias na escola não o agradavam. Só lhe restavam os livros, que devorava com voracidade, e um velho teclado que seu irmão mais velho Joseph havia comprado e nunca havia usado. Mas seu interesse por música aflorou apenas aos 15 ou 16 anos, quando viu uma performance do cantor inglês Antony Hegarty. De repente, o velho teclado de seu irmão ficou atraente, e ele passou a tirar de ouvido composições clássicas que ouvia na estação de música clássica de seu rádio.

Quando tinha 17 anos, não aguentou mais a situação em sua casa e resolveu que era hora de partir. Colocou algumas roupas em uma mochila, entrou em uma lan house, acessou o site de compras de passagens aéreas easyJet e selecionou a primeira opção, ao acaso: Paris. Chegou sem um tostão e sem nenhum vínculo com sua cidade de origem. Jogou o telefone no lixo, pois ninguém iria ligar. Começou a dormir de favor em igrejas e garagens, mesmo sem falar uma palavra de francês, e se sustentava cantando sem acompanhamento pelas estações de metrô da capital da França. Em oito meses, conseguiu comprar um violão, que aprendeu a tocar sozinho.

 E assim Benjamin Clementine chegou à primeira linha deste post.

Eventualmente, ele seria "descoberto" por dois produtores franceses – Lionel Bensemoun e Matthieu Gazier –, que conseguiram marcar algumas apresentações para Benjamin em hotéis e muquifos parisienses. As pessoas se interessaram por aquela figura de quase dois metros, olhar triste e talento fantástico, e logo ele gravaria seu primeiro EP: Cornerstone, aqui resenhado.

É difícil acreditar, mas o talento de Benjamin é ainda mais incrível que sua história. A faixa de abertura, Cornerstone, começa com arpejos ao piano, o único instrumento além da voz do músico de 25 anos. Após uma rápida introdução, a voz grave e profunda anuncia: "I'm alone in a box of stone" (estou sozinho em uma caixa de pedra), reflexo de toda sua vida solitária. Sua performance não deixa nada a desejar para nomes do calibre de Nina Simone, e olhe que isso é uma afirmação muito complicada de se fazer. O refrão emocionante e seus quase suspiros de "home, home, home, home..." têm em si uma carga emocional muito forte.



I Won't Complain traz uma bela melodia, tocada com virtuosismo, e uma letra de certa maneira otimista, que contempla um dia em que os dias bons voltarão. As letras de Clementine, aliás, são absolutamente pessoais, e talvez isso seja parte fundamental de suas performances tão energéticas. Os movimentos da música, os crescendos e as pausas rasgadas por sua voz gritando "but I won't complain" são sensacionais.

O EP encerra com London, que traz uma letra enigmática e um contraste interessantíssimo entre o verso mais ameno e o refrão explosivo, em que Benjamin solta a voz e acelera o ritmo em seu piano. E a música termina com a emblemática frase "when my ways are not happening, I won't underestimate who I am capable of becoming", que quer dizer "quando meus caminhos não estiverem dando certo, não vou subestimar quem sou capaz de me tornar". 

Ainda não há uma previsão exata para o lançamento do primeiro álbum de Benjamin Clementine, mas as músicas e os músicos (sim, terão outros músicos) já existem. E, se o álbum seguir os passos deste EP incrivelmente promissor, teremos um prato cheio.

Tracklist:
1. Cornestone
2. I Won't Complain
3. London

Abaixo, Benjamin toca algumas de suas canções, incluindo as do EP, em um pocket show feito exclusivamente para o Deezer:


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Banda: Got a Girl; Álbum: I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now



Banda: Got a Girl
Álbum: I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now
Ano: 2014
Gênero: Pop francês, lounge

É interessante, após mais de 50 postagens e incríveis oito anos, voltar a escrever sobre uma pessoa que ilustrou a primeira, e somente a primeira, resenha publicada neste blog: Dan Nakamura, conhecido como Dan The Automator. O único trabalho dele que eu conhecia era justamente um dos mais marcantes do começo da minha vida adulta: Music to Make Love to Your Old Lady By, de seu projeto Lovage (que conta, também, com o versátil Mike Patton e com a voz de veludo de Jennifer Charles). Entretanto, ao pesquisar os últimos lançamentos, deparei-me com o excêntrico título I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now ("eu te amo mas preciso dirigir para fora deste penhasco agora"). Quando vi que se tratava do novo projeto de Dan, não hesitei em sincronizar no Deezer.

O Got a Girl é uma parceria de Dan com a atriz e cantora Mary Elizabeth Winstead, que já participou de filmes como À Prova de Morte, de Quentin Tarantino, e Scott Pilgrim Contra o Mundo. Foi nos bastidores de Scott Pilgrim, aliás, que a dupla se conheceu. Ela foi até Dan para expressar sua admiração pelo Lovage, e Dan, em resposta, perguntou se ela teria interesse em "fazer música". Estava formado o embrião do projeto.

Conforme o diálogo entre os dois foi se desenvolvendo, eles descobriram que tinham em comum o apreço pelo pop francês do fim dos anos 60 e começo dos anos 70, de nomes como Serge Gainsbourg, Jane Birkin, Sylvie Vartan, Françoise Hardy e muitos outros. Aqui vale a pena abrir um parêntese para falar um pouco sobre o pop na França.

Um termo muito recorrente quando se fala de música francesa é chanson (canção). Embora o termo possa ser aplicado a qualquer música cantada em francês, quando se fala em chanson se está pensando num gênero musical que foi popular na França no período entre o final do século XIX até a metade da década de 60 no século XX. Talvez seus representantes mais conhecidos fora dos países francófonos sejam o belga Jacques Brel e Édith Piaf, ambos idolatrados por suas vozes e pela singularidade de suas interpretações. Talvez o equivalente brasileiro do chanson seja o samba-canção: em ambos os estilos, os intérpretes apresentam vozes potentes, que são o principal foco da canção, com o acompanhamento de uma orquestra, piano ou instrumento acústico. Porém, a partir dos anos 60, o estilo, a exemplo do que ocorreria em diversos outros países do mundo ocidental, acabou se misturando a outros de origens distintas (como o rock and roll) e gerando diversos subgêneros, como o yé-yé  e o pop.

O pop francês dessa época apresentava, via de regra, batidas suaves, texturas feitas no sintetizador (ou mesmo orquestra) e era, no geral, muito melódico. A voz, antes potente e protagonista absoluta, agora era muito mais suave e trazia muito mais sex appeal - isso quando o sexo não era praticamente explícito na música, como na famigerada Je t'aime... moi non plus, de Gainsbourg e Birkin. Alguns grupos franceses ainda carregam bastante influência desse estilo, como o Air, por exemplo. Dito isto, voltemos ao Got a Girl. 

O diálogo entre Mary e Dan foi tomando forma até que o single You and Me (Board Mix) foi lançado em maio de 2013. No mesmo mês, eles lançaram I'm Down, que é uma interpretação de uma das canções do "álbum" Song Reader, de Beck (digo "álbum" porque, na verdade, trata-se de uma coleção de partituras). Entretanto, levaria mais de um ano para que o primeiro álbum fosse lançado no dia 22 de julho de 2014.

A faixa de abertura e primeiro single do álbum (que será chamado de I Love You But... no resto deste post) é a viciante Did We Live Too Fast. Tudo parece estar no lugar para os créditos iniciais de um filme de Tarantino: os sinos, as cordas, a batida suave contrastando com os estouros de percussão e, por fim, a voz deliciosa de Winstead cantando suavemente, quase à-lá Jennifer Charles (difícil não fazer a comparação). O refrão chiclete e a parte quase sussurrada dão o já citado tom "français" à ótima faixa de abertura.



A faixa seguinte, I'll Never Hold You Back, bebe bastante do dream pop e do trip hop. Uma batida mais lenta, repleta de sintetizadores, e um suave piano guiam a canção, que em momentos até lembra um pouco The Cramberries. É interessante notar a competência de Winstead tanto nos registros agudos quanto nos mais graves, que são predominantes na maior parte da música.

Close To You é um pop delicioso e direto, com uma batida reta e vocais quase sussurrados. O baixo e os teclados guiam a música até o refrão marcante, rico em sintetizadores. Faixa muito bem construída e equilibrada, com direito a um longo segmento instrumental no final.

O clima leve da canção anterior esvanece logo na introdução de Everywhere I Go, com sua orquestração dramática e levada mais arrastada. A melodia aqui é mais melancólica, quase como uma triste canção de ninar, e no refrão a voz de Winstead entrando junto com o carrilhão (aquele instrumento que emite um som semelhante ao som de "sonhos" ou "estrelas") parece uma onda, oscilando entre os graves e agudos enquanto um cravo dá um tom noir. Ótima faixa.

Last Stop, por sua vez, é bem mais minimalista, com seu pianinho agudo e seu clima quase de jingle. Ao contrário de Everywhere I Go, o clima aqui é leve e quase descompromissado, e dá vontade de estalar os dedos no ritmo da música.

Por isso, é um choque quando a próxima faixa chega com tudo. There's a Revolution bebe da fonte do synthpop e do new wave, fazendo com que o Got a Girl apresente uma pegada indie pela primeira vez em I Love You But.... Com muitos teclados e vocais mais próximos do estilo de Debbie Harry (vocalista do Blondie) do que de Jennifer Charles. Uma ótima surpresa.

Things Will Never Be The Same tem uma sensualidade pesada e atmosférica, com seu riff marcante de baixo e backing vocals. No refrão, os sintetizadores invadem a música de maneira grandiosa, contrastando com a voz suave e contribuindo ainda mais para o clima denso da canção. 

O começo de Put Your Head Down parece ter saído de uma caixinha de música. Entretanto, aos poucos a música vai se construindo diante de nossos ouvidos: primeiro, entra a voz quase fantasmagórica; em seguida, um violão toca alguns acordes e a bateria dá as caras. Quando o ouvinte menos percebe, a música está completa. No refrão, Winstead faz um dueto com ninguém menos que Mike Patton, que tem um interlúdio só pra ele (que, de maneira quase caricata, sugere um sanduíche de fritas com mortadeeeella).

Friday Night tem uma pegada bem lounge, suave e tranquila. Linear, ela mantém o padrão de I Love You But..., com os vocais sussurrados e teclados atmosféricos, mas vejo esta faixa mais como um filler do que como um destaque.

La La La soa um pouco mais contemporânea, guiada mais pela bateria e pelo baixo do que pelo teclado propriamente dito e com uma bateria mais distorcida. Ainda assim, apresenta o clima retrô característico e consegue cativar.

Mas mais interessante que La La La é o divertido filler Da Da Da, com sua batida mais rápida e animada. Ao fundo, Winstead reclama com bom humor de ter de cantar essa "merda de música", mas é uma faixa interessante e contribui para a variedade do álbum.

A saideira é Heavenly. Mais lenta, ela tem um clima mais melancólico e dark, mas culmina em um refrão surpreendentemente delicado e bonito. Talvez lembre até um pouco alguma coisa que o The Cardigans tivesse feito caso quisesse seguir uma carreira no dream pop.

Por fim, o debut do Got a Girl é um lançamento interessantíssimo. Mary Elizabeth Winstead não é uma Amy Winehouse, mas o lance é que não há a menor necessidade que ela seja. Sua voz suave e seu jeito doce de cantar caem como uma luva para o som do Got a Girl. 

Também vale notar como Dan The Automator acertou na mosca na produção, conseguindo apresentar um álbum empolgante e divertido tendo como base um estilo nascido há praticamente meio século.

Mas talvez a grande sacada do Got a Girl tenha sido a leveza. Não me refiro ao som, mas à visão deles em relação a eles mesmos. Não é um projeto pretensioso, com grandes objetivos e ambições. Trata-se apenas de uma dupla fazendo um som que eles curtem, e nada mais. Os teasers do álbum, divulgados no canal Maker Music, são ótimos. Confira o exemplo abaixo e entre no canal para ver os outros!




Embora I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now talvez seja um pouco longo demais (poderia tranquilamente ter duas ou três faixas a menos), algumas das músicas são verdadeiramente memoráveis – temos aí Did We Live Too Fast, Close To You, Everywhere I go e There's a Revolution, que não me deixam mentir.

Um dos lançamentos mais empolgantes do ano até agora.

Tracklist:
1. Did We Live Too Fast
2. I'll Never Hold You Back
3. Close To You
4. Everywhere I Go
5. Last Stop
6. There's a Revolution
7. Things Will Never Be The Same
8. Put Your Head Down
9. Friday Night
10. La La La
11. Da Da Da
12. Heavenly