segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Artista: Fantastic Plastic Machine; Álbum: The Fantastic Plastic Machine


Artista: Fantastic Plastic Machine
Álbum: The Fantastic Plastic Machine
Ano: 1997
Gênero: Música eletrônica; Shibuya-kei


Em 2003, na remota época anterior ao YouTube, os vídeos circulavam pela internet via e-mails, softwares de compartilhamento, FTPs e outros meios não tão acessíveis. Eu não me lembro exatamente por qual deles chegou um comercial da Louis Vuitton que me chamou muito a atenção. A parte visual era belíssima, mas o que realmente me prendeu foi a música: uma mistura de muitos fragmentos e instrumentos resultando em um som surpreendentemente pop e bonito. Era o Superflat Monogram, produzido pelo artista japonês Takashi Murakami e com trilha sonora de Tomoyuki Tanaka, mais conhecido por seu nome artístico Fantastic Plastic Machine.


Descobri o nome da música – Different Colors – e descobri também que o estilo do Fantastic Plastic Machine tem um nome: Shibuya-kei, ou "estilo de Shibuya". A origem deste nome é bem interessante. Shibuya é um distrito de Tokyo, famoso por suas inúmeras lojas de roupas de grifes famosas. Do seio dessa cultura de consumo, um grupo de DJs, produtores e bandas começou a produzir materiais que traziam algumas características em comum: bastante influência da bossa nova, do pop francês sessentista, do yé-yé, do lounge e de outras vertentes ocidentais, mas fragmentadas e arranjadas de uma maneira peculiar, que refletia a realidade da juventude oriental daquela região.

O primeiro álbum do FPM (abreviação que passaremos a usar para o restante deste post), o auto-intitulado The Fantastic Plastic Machine, é considerado um álbum seminal do shibuya-kei, apresentando seus principais elementos de maneira brilhante e equilibrada. Vamos às faixas!

Apesar de curtíssima, a música que abre o disco, Bon Voyage, já mostra alguns elementos descritos acima: colagens sonoras, uma voz feminina contando one, two, three, four ao fundo, um coralzinho fazendo o pano de fundo e, inesperadamente, uma voz masculina deseja ao ouvinte, em francês, um bon voyage. É o suficiente para o álbum começar de verdade com L'Aventure Fantastique. A melodia da introdução é simples, mas é como se cada nota da frase musical tivesse sido tirada de uma outra música e colada ali. Um sample de voz feminina dá as boas-vindas ao ouvinte em francês e inglês, e então começa uma batida eletrônica típica do house. Em meio aos eventuais samples de vozes, uma melodia quase infantil (e bastante fragmentada) chama a atenção, como se tivesse saído de um brinquedo muito esquisito de uma criança do futuro. O arranjo tem tantos detalhes que é preciso escutar muitas vezes para captar tudo, e ainda assim é extremamente fácil de escutar. Um belíssimo começo.

Mr. Salesman emprega em sua melodia e ritmo muitos elementos do yé-yé sessentista francês (o equivalente ao nosso iê-iê-iê brasileiro), mas com um brilho e alegria muito característicos do shibuya-kei. Desta vez, a estrutura da música é mais convencional, com versos e refrão, mas a maneira como o arranjo é construído é muito peculiar. Muitos teclados, flauta e diversos outros instrumentos, provavelmente oriundos de canções dos anos 60 e 70 e sabe-se lá de onde. Outra música muito bacana.

A faixa seguinte, Barcherlor Pad (F.P.M. edit), empresta bastante do pop francês e do drum 'n' bass, exagerando nas vocalizações femininas cantando um pa-pa-pa sobre uma base percussiva muito completa, preenchida por baixo, guitarra e muitos teclados. Em determinada parte da música, uma pausa que até lembra a pausa dos Mutantes em Rua Augusta. Interessante ver como o FPM consegue criar tantas variações de intensidade e arranjo dentro da mesma melodia.

Fantastic Plastic World (voice 'n' baroque) tem uma batida reta da bateria e um toque de trip-hop e soul. O vocal é todo falado, quase sussurrado, em francês por uma moça de voz suave sobre a base à-lá The Roots, até que eventualmente um sample de chanson (venho falando muito sobre o chanson em resenhas recentes) dá as caras e começa a competir com um ruído que fica cada vez mais agudo. Quando tudo parece caminhar para um gran finale, o volume da música vai abaixando e temos um tradicional fade-out, que neste contexto é realmente surpreendente.

O ouvinte brasileiro certamente se sentirá em casa ao ouvir a próxima faixa, Steppin' Out. A canção é uma belíssima bossa nova com uma roupagem diferente, contendo um discreto beatbox e um tecladinho futurista dando as caras eventualmente (lembra um pouco Caipirinhaum dueto de Mike Patton e Bebel Gilberto que aparece no álbum auto-intitulado do Peeping Tom). Cantada em inglês, é extremamente agradável e é um belíssimo complemento ao disco, conseguindo ser diferente sem destoar do estilo das demais. Quando a bateria eletrônica eletrônica entra, é surpreendente; quando ela dá lugar a uma inesperada percussão de escola de samba, vemos como a visão dos músicos de shibuya é interessante. Um dos pontos altos do álbum.




Allen Ginsberg leva o nome de um dos poetas mais importantes da geração beat, famoso pelo poema Howl (Uivo), de 1955, que abordava temas como homossexualidade, materialismo e política, que eventualmente lhe renderia um processo por "obscenidade". É uma das mais experimentais do disco, com uma melodia quase balcânica tocada por um teclado/acordeão e uma passagem tocada no saxofone. Será que a melodia instável e o ritmo frenético são um reflexo da vida do poeta que dá nome à música?

Após um começo totalmente fragmentado, First Class '77 assume um formato bem viajante, com texturas bem viajantes, uma batida espaçada e um insistente sample de voz. Apesar de ter quase sete minutos, é uma das faixas mais fracas do álbum, e funciona mais como um filler.

Philter (In Viaggio Attraverso L'Australia) tem uma melodia marcante e que parece saída dos anos 30, acompanhada por uma voz feminina fazendo vocalizações. A bateria, entretanto, apresenta diversas variações, incluindo o jungle (ou drum 'n' bass), que estava no auge da popularidade na época em que o álbum foi lançado. É um perfeito exemplo de como o shibuya-key mescla influências muito distintas e a transforma em algo novo e instantaneamente reconhecível.

A penúltima faixa, Please, Stop!, traz um coro feminino fazendo vocalizações típicas do doo wop sobre a bateria eletrônica. É interessante, mas um tanto repetitiva e não chega a ser um destaque.

O álbum termina com Pura Saudade (Nova Bossa Nova), que já deixa explícita no título sua principal influência. A exemplo de Steppin' Out, é uma bossa com um toque moderno, mas desta vez é cantada em português por uma vocalista mulher e não apresenta tantas variações e experimentações. Ainda assim, é um belo encerramento.

O debut do Fantastic Plastic Machine é um belo exemplo de como existem diversas formas de rearranjar e inovar estilos aparentemente esgotados. A música alegre e colorida deste álbum (e do shibuya-kei, em geral), seu uso inteligente dos samples e a produção impecável são dignos de serem conhecidos e apreciados.

Tracklist:
1. Bon Voyage
2. L'Aventure Fantastique
3. Dear Mr. Salesman
4. Barchelor Pad (F.P.M. Edit)

5. Fantastic Plastic World (voice 'n' baroque)
6. Steppin' Out
7. Allen Ginsberg
8. First Class '77
9. Philter (In Viaggio Attraverso L'Australia)
10. Please, Stop!
11. Pura Saudade (Nova Bossa Nova)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Artista: Manu Galure; Álbum: Vacarme

Artista: Manu Galure
Álbum: Vacarme
Ano: 2010
Gênero: Chanson; jazz


Há alguns posts, falei sobre o álbum I Love You But I Must Drive Off This Cliff Now, do Got a Girl, e as circunstâncias exigiram que eu fizesse um apanhado geral sobre o que é o chanson e a música pop francesa. Como o álbum aqui resenhado é um álbum francês tanto em origem quanto em estilo, é pertinente dar um ctrl+c ctrl+v:
Um termo muito recorrente quando se fala de música francesa é chanson (canção). Embora o termo possa ser aplicado a qualquer música cantada em francês, quando se fala em chanson se está pensando num gênero musical que foi popular na França no período entre o final do século XIX até a metade da década de 60 no século XX. Talvez seus representantes mais conhecidos fora dos países francófonos sejam o belga Jacques Brel e Édith Piaf, ambos idolatrados por suas vozes e pela singularidade de suas interpretações. Talvez o equivalente brasileiro do chanson seja o samba-canção: em ambos os estilos, os intérpretes apresentam vozes potentes, que são o principal foco da canção, com o acompanhamento de uma orquestra, piano ou instrumento acústico. Porém, a partir dos anos 60, o estilo, a exemplo do que ocorreria em diversos outros países do mundo ocidental, acabou se misturando a outros de origens distintas (como o rock and roll) e gerando diversos subgêneros, como o yé-yé  e o pop.
Pois bem. A mistura de gêneros e influências citada acima resultou em um boom criativo na França, e até hoje algum artista ou grupo oriundo do país ocasionalmente faz sucesso fora do circuito francófono: Daft Punk, Air, Justice, Manu Chao e outros tantos, às vezes inclusive cantando em francês (alguém se lembra do Tragédie e seu hit Hey Oh?). Porém, se há nas músicas destes artistas algum resquício do velho chanson, ele está tão diluído que chega a ser difícil encontrá-lo.

Definitivamente este não é o caso das composições de Manu Galure. O rapaz de 29 anos exala o chanson pelos poros de seu piano e de sua voz, apresentando-o com novas roupas, novo fôlego, mas mantendo-o plenamente reconhecível. Curiosamente, ao pesquisar sobre ele na internet, notei que é bastante desconhecido fora da França e, talvez, até dentro dela. Sua página na Wikipedia francesa, por exemplo, é bem modesta, e não existe sequer uma menção a ele na gigantesca versão em inglês. Ao recorrer ao seu site oficial (em francês), frustrei-me ao ler "biografia" no plural, sendo que apenas uma das seis (!) está pronta e é uma piada: um registro fictício "escrito em 2078" na "Antologia do Chanson Francês" dizendo como Galure é a "figura maior do ainda-mais-novo-chanson-francês". Mas deixemos as gracinhas de lado e vamos à música.

Vacarme é o segundo álbum de Manu Galure e foi lançado em 2010 (o debut, Le Meilleur des Vingt Ans de Manu Galure, fora lançado dois anos antes). A capa é pouco reveladora para alguém que, como eu, começa a ouvir o álbum sem ter ideia do que esperar em termos de som, mas basta Danse du Vieux (Dança do Velho, corrijam-me se eu estiver equivocado) dar as caras para identificarmos alguns dos elementos chave do estilo de Galure. O piano é o instrumento dominante, não há um comprometimento com a seriedade nas letras e a interpretação das mesmas é bastante teatral. Além disso, no caso da faixa-título, a ausência de guitarras, baixo e até mesmo bateria chama a atenção; a percussão fica por conta de um "relógio-metrônomo" e de eventuais pratos. A performance vocal é fantástica, alternando entre um vocal quase falado para um "lalala" rouco e forte, à lá scat singing (aquelas vocalizações improvisadas e sem letra, típicas do jazz).

Captain Ravage é divertida e soa mais moderna que a anterior. Embora seja guiada principalmente pela voz e pelo teclado de Galure, temos aqui baixo, bateria, uma eventual guitarra e até backing vocals femininos, num estilo mais próximo do jazz. Gostaria muito de poder entender tudo o que ele fala, mas é possível perceber que ele conta a saga de seu personagem que dá título à música. Uma divertida e bela canção.

Uma das minhas favoritas é a terceira, Berlin-Lycanthropes (Lobisomens de Berlim). Um jazz com clima noir, com direito a eventuais uivos histéricos e mais scat singing. O baixo é o grande destaque aqui, apesar de, ao vivo, ser tocado ao teclado com bastante competência por Pierre Bauzerand. Confira abaixo uma performance (em andamento bem mais lento do que no álbum).



Les Éléphants é mais lenta, vagarosa como a passada dos elefantes que lhe dão nome. Estende-se por mais de seis minutos e vai se intensificando pouco a pouco, chegando a um clímax instrumental e morrendo aos poucos com o fade out. Entretanto, musicalmente, não é uma das mais interessantes de Vacarme, e me pergunto se a letra não esconde as principais qualidades desta canção.

A morosidade da faixa anterior é destruída por Je Crache (Eu Cuspo), o momento mais rock and roll do álbum. É a primeira vez que a bateria dá as caras com mais volume, e o ritmo acelerado e as pausas remetem ao rock dos anos sessenta, com um coral de vozes femininas cantando o refrão. Em alguns momentos, os teclados tocam um riff pesado que pode até parecer emprestado do Deep Purple. Faixa muito interessante e destoante do resto do disco.

Méliès, uma homenagem ao famoso ilusionista e cineasta francês Georges Méliès, tem um ritmo quase galopante, com o teclado pulsante e o piano mais melódico dialogando o tempo todo enquanto Galure canta. Uma bela homenagem a uma figura importantíssima, que revolucionou o cinema. Veja abaixo Méliès em ação em Le Voyage Dans la Lune, de 1902 (!!):




Du Vacarme (Algazarra) começa com um clima sinistro, com acordes dissonantes no teclado e um Galure incisivo recitando a letra. Porém, aos poucos, a bateria vai se intensificando, e a canção ganha mais peso e texturas, ficando cada vez maior. Quando nos damos conta, a música está enorme e surpreendentemente barulhenta, envolvendo absolutamente o ouvinte em apenas três minutos. Uma ótima faixa.

Bijoux (Jóias) é uma pequena peça de dois minutos de duração. Composta apenas por piano e voz, é a mais melancólica de Vacarme, mas também uma das mais belas, com uma interpretação impecável de Galure tanto na voz quanto no piano.

Quelque Chose en Mi (Qualquer Coisa em Mi) tem uma pegada totalmente big band, com o baixo dominante e mais scat singing. Poderia estar em uma versão francesa do clássico O Máscara, em alguma cena dentro do Coco Bongo. O solo de piano de Galure é sensacional.

Valse-moi (Valsa-me) é, como o nome sugere, uma valsa. Entretanto, está longe de ser convencional, visto que o compasso é irregular e há diversas variações de intensidade dentro da música. Os versos são quase circenses, enquanto os refrões são minimalistas, com Galure cantando com voz suave e tocando arpejos agudos e rápidos em seu piano. Mais uma bela faixa.

O álbum termina com Le Cabaret de Galure (O Cabaré de Galure), uma faixa que lembra Les Éléphants em andamento, mas com uma percussão mais leve. É uma pena não saber o que ele está dizendo, porque sem o conteúdo da letra a faixa que fecha Vacarme soa um tanto sem graça. Mas isso está longe de tirar o brilho ou o talento deste álbum de um artista tão jovem e talentoso.

Vacarme é um ótimo álbum, com momentos verdadeiramente interessantes (como Danse du Vieux, Berlin-Lycanthropes, Je Crache e Valse-Moi). Porém, é evidente que a obra de Manu Galure se torna muito mais interessante com a plena compreensão das letras, e o idioma se torna uma barreira importante nesse aspecto. Mas mesmo sem parler pas français, é possível aproveitar este belo disco, que pode ser ouvido na íntegra neste link do site oficial de Manu Galure.

Tracklist: 
1. Danse du Vieux
2. Captain Ravage
3. Berlin-Lycanthropes
4. Les Éléphants
5. Je Crache
6. Méliès
7. Du Vacarme
8. Bijoux
9. Quelque Chose en Mi
10. Valse-moi
11. Le Cabaret de Galure